A bilbioteca é a história viva do Livro e seus leitores

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Biblioteca do Real Gabinete Português de Leitura - RJ

sexta-feira, 19 de outubro de 2012


Revisitar a história de representantes da história da literatura brasileira significa revisitar modos de expressão da condição nacional. A maneira como estas expressões são refiguradas nos romances em análise aqui, nos leva a refletir sobre aspectos da história da literatura nacional, bem como das comunidades imaginadas em cada momento histórico narrado. O Brasil de Gregório de Matos, Augusto dos Anjos e Gonçalves Dias são comunidades imaginadas que participam ou são constituintes da comunidade imaginada que é o Brasil do presente. Ana Miranda volta-se para os representantes nacionais inscritos na historicidade, não para exaltá-los como heróis nacionais, mas para integrá-los à memória política e social do país.  O conceito de nação expresso e marcado pela territorialidade é substituído por um conceito marcado pelo aspecto cultural inscrito na história das mentalidades de cada período narrado. Parece-nos que importa para Ana Miranda olhar a nação e a literatura nacional brasileira por suas particularidades históricas e culturais, inseridas em contextos transitórios, momentos de incertezas e de intenso movimento social. A partir destas particularidades é que poderíamos visualizar o mosaico histórico-cultural da condição nacional brasileira.
Através da revisitação da memória e do momento literário de cada poeta, há, nos romances de Ana Miranda, uma busca pela refiguração de uma condição nacional re-emergente. Assim, no romance Boca do inferno, Gregório de Matos, no século XVII, revolta-se com as atitudes subservientes do Brasil em relação a Portugal, vivendo uma relação de amor e ódio com as duas pátrias, mas sendo ainda um sabiá em liberdade. Na narrativa de Dias e dias encontramos Gonçalves Dias, no século XIX, num contexto de luta pela afirmação da identidade brasileira diante da pátria-mãe, para isso é preciso superar a perda e suportar as limitações da gaiola nacionalista. De outro modo, em A última quimera, as reflexões sobre o canônico revelam uma crítica ao sistema histórico-literário brasileiro em franco reconhecimento da autonomia da literatura e da comunidade nacional brasileira que discute internamente seu processo de formação.
Entendemos, portanto que o caráter nacionalista do romance histórico permanece, porém a função revisionista da apropriação do discurso histórico com fins didático e divulgador de um ideal nacional passou a investir na revisitação crítica e reflexiva de antigos discursos. A finalidade didática atualiza-se na medida em que a narrativa atrela-se a teorias contemporâneas de recepção e construção textual, engendradas no contexto da pós-modernidade. O grau de compreensão e de inter-relação entre o leitor e o texto destes romances de Ana Miranda depende da capacidade do leitor de inferir, de entrar no jogo paródico proposto por eles. Quanto ao ideal nacional que parece estar inscrito nos romances de Ana Miranda, ficamos aqui com uma síntese apresentada por Homi Bhabha do pensamento de Hannah Arendt sobre o conceito moderno de nação:

A sociedade de nação no mundo moderno é aquele reino curiosamente híbrido, onde interesses privados assumem significância pública e os dois reinos unem-se continuamente e imprecisamente como ondas no fluxo interminável da própria vida. [Tradução nossa].

Assim, os romances históricos de Ana Miranda vêm confirmar que o “fim da era nacionalista”, [1] como afirma B. Anderson, parece mesmo ainda muito distante.



[1]ANDERSON, B. Comunidades imaginadas: reflexões sobre a origem e a difusão do nacionalismo.  São Paulo: Companhia das Letras, 2008. p.28.